Capítulo I
O conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, — segundo costumava dizer, — e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr. Camargo, chamado à pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da religião: a morte fora instantânea.
No dia seguinte fez-se o enterro, que foi um dos mais concorridos que ainda viram os moradores do Andaraí. Cerca de duzentas pessoas acompanharam o finado até à morada última, achando-se representadas entre elas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de família. Seu pai fora magistrado no tempo colonial, e figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado materno descendia de uma das mais distintas famílias paulistas. Ele próprio exercera dois empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do que lhe adveio a carta de conselho e a estima dos homens públicos. Sem embargo do ardor político do tempo, não estava ligado a nenhum dos dois partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que ali se acharam na ocasião de o dar à sepultura. Tinha, entretanto, tais ou quais idéias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e liberais, justamente no ponto em que os dois domínios podem confundir-se. Se nenhuma saudade partidária lhe deitou a última pá de terra, matrona houve, e não só uma, que viu ir a enterrar com ele a melhor página da sua mocidade.
A família do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr. Estácio, e uma irmã, D. Úrsula. Contava esta cinqüenta e poucos anos; era solteira; vivera sempre com o irmão, cuja casa dirigia desde o falecimento da cunhada. Estácio tinha vinte e sete anos, e era formado em matemáticas. O conselheiro tentara encarreirá-lo na política, depois na diplomacia; mas nenhum desses projetos teve começo de execução.
O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do enterro, foi ter com Estácio, a quem encontrou no gabinete particular do finado, em companhia de D. Úrsula. Também a dor tem suas volúpias; tia e sobrinho queriam nutri-la com a presença dos objetos pessoais do morto, no lugar de suas predileções quotidianas. Duas tristes luzes alumiavam aquela pequena sala. Alguns momentos correram de profundo silêncio entre os três. O primeiro que o rompeu, foi o médico.
— Seu pai deixou testamento?
— Não sei, respondeu Estácio.
Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou três vezes, gesto que lhe era habitual quando fazia alguma reflexão.
— É preciso procurá-lo, continuou ele. Quer que o ajude?
Estácio apertou-lhe afetuosamente a mão.
— A morte de meu pai, disse o moço, não alterou nada as nossas relações. Subsiste a confiança anterior, do mesmo modo que a amizade, já provada e antiga.
A secretária estava fechada; Estácio deu a chave ao médico; este abriu o móvel sem nenhuma comoção exterior. Interiormente estava abalado. O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade, expressão em que, aliás, nenhum dos outros reparou. Logo que começou a revolver os papéis, a mão do médico tornou-se mais febril. Quando achou o testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que sucedeu a serenidade habitual.
— É isso? perguntou Estácio.
Camargo não respondeu logo; olhou para o papel, como a querer adivinhar o conteúdo. O silêncio foi muito demorado para não fazer impressão no moço, que aliás nada disse, porque o atribuíra à comoção natural do amigo em tão dolorosas circunstâncias.
— Sabem o que estará aqui dentro? disse enfim Camargo. Talvez uma lacuna ou um grande excesso.
Nem Estácio, nem D. Úrsula, pediram ao médico a explicação de semelhantes palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico pode lê-la nos olhos de ambos. Não lhes disse nada; entregou o testamento a Estácio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido em suas próprias reflexões, ora arranjando maquinalmente um livro da estante, ora metendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista queda, alheio de todo ao lugar e às pessoas.
Estácio rompeu o silêncio:
— Mas que lacuna ou que excesso é esse? perguntou ao médico.
Camargo parou diante do moço.
— Não posso dizer nada, respondeu ele. Seria inconveniente, antes de saber as últimas disposições de seu pai.
D. Úrsula foi menos discreta que o sobrinho; após longa pausa, pediu ao médico a razão de suas palavras.
— Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excelentes. Era seu amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem a confiança que ambos depositávamos um no outro. Não quisera, pois, que o último ato de sua vida fosse um erro.
— Um erro! exclamou D. Úrsula.
— Talvez um erro! suspirou Camargo.
— Mas, doutor, insistiu D. Úrsula, por que motivo nos não tranqüiliza o espírito? Estou certa de que não se trata de um ato que desdoure meu irmão; alude naturalmente a algum erro no modo de entender... alguma coisa, que eu ignoro o que seja. Por que não fala claramente?
O médico viu que D. Úrsula tinha razão; e que, a não dizer mais nada, melhor fora ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impressão de estranheza que deixara no ânimo dos dois; mas da hesitação com que falava, concluiu Estácio que ele não podia ir além do que havia dito.
— Não precisamos de explicação nenhuma, interveio o filho do conselheiro; amanhã saberemos tudo.
Nessa ocasião entrou o padre Melchior. O médico saiu às 10 horas, ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estácio, recolhendo-se ao quarto, murmurava consigo:
— Que erro será esse? E que necessidade tinha ele de vir lançar-me este enigma no coração?
A resposta, se pudesse ouvi-la, era dada nessa mesma ocasião pelo próprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava à porta:
— Fiz bem em preparar-lhes o espírito, pensou ele; o golpe, se o houver, há de ser mais fácil de sofrer.
O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguém pôde ver-lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Exumou o passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu, nada foi comunicado a ouvidos estranhos.
As relações do Dr. Camargo com a família do conselheiro eram estreitas e antigas, como dissera Estácio. O médico e o conselheiro tinham a mesma idade: cinqüenta e quatro anos. Conheceram-se logo depois de tomado o grau, e nunca mais afrouxara o laço que os prendera desde esse tempo.
Camargo era pouco simpático à primeira vista. Tinha as feições duras e frias, os olhos perscrutadores e sagazes, de uma sagacidade incômoda para quem encarava com eles, o que o não fazia atraente. Falava pouco e seco. Seus sentimentos não vinham à flor do rosto. Tinha todos os visíveis sinais de um grande egoísta; contudo, posto que a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lágrima ou uma palavra de tristeza, é certo que a sentiu deveras. Além disso, amava sobre todas as coisas e pessoas uma criatura linda, — a linda Eugênia, como lhe chamava, — sua filha única e a flor de seus olhos; mas amava-a de um amor calado e recôndito. Era difícil saber se Camargo professava algumas opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se as tinha, nunca deu manifestação prática; e no meio das lutas de que fora cheio o decênio anterior, conservara-se indiferente e neutral. Quanto aos sentimentos religiosos, a aferi-los pelas ações, ninguém os possuía mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom católico. Mas só pontual; interiormente, era incrédulo.
Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher, — D. Tomásia, — meio adormecida numa cadeira de balanço e Eugênia ao piano, executando um trecho de Bellini. Eugênia tocava com habilidade; e Camargo gostava de a ouvir. Naquela ocasião, porém, disse ele, parecia pouco conveniente que a moça se entregasse a um gênero de recreio qualquer. Eugênia obedeceu, algum tanto de má vontade. O pai, que se achava ao pé do piano, pegou-lhe nas mãos, logo que ela se levantou, e fitou-lhe uns olhos amorosos e profundos, como ela nunca lhe vira.
— Não fiquei triste pelo que me disse, papai, observou a moça. Tocava por distrair-me. D. Úrsula como está? Ficou tão aflita! Mamãe queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a tristeza daquela casa.
— Mas a tristeza é necessária à vida, acudiu D. Tomásia, que abrira os olhos logo à entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as próprias, e são um corretivo da alegria, cujo excesso pode engendrar o orgulho.
Camargo temperou esta filosofia, que lhe pareceu demasiado austera, com algumas idéias mais acomodadas e risonhas.
— Deixemos a cada idade a sua atmosfera própria, concluiu ele, e não antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não passaram do puro sentimento.
Eugênia não compreendeu o que os dois haviam dito. Voltou os olhos para o piano, com uma expressão de saudade. Com a mão esquerda, assim mesmo de pé, extraiu vagamente três ou quatro notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fitá-la com desusada ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação interior. A moça sentiu-se enlaçada nos braços dele; deixou-se ir. Mas a expansão era tão nova, que ela ficou assustada e perguntou com voz trêmula:
— Aconteceu lá alguma coisa?
— Absolutamente nada, respondeu Camargo, dando-lhe um beijo na testa.
Era o primeiro beijo, ao menos o primeiro de que a moça tinha memória. A carícia encheu-a de orgulho filial; mas a própria novidade dela impressionou-a mais. Eugênia não creu no que lhe dissera o pai. Viu-o ir sentar-se ao pé de D. Tomásia e conversarem em voz baixa. Aproximando-se, não interrompeu a conversa, que eles continuaram no mesmo tom, e versava sobre assuntos puramente domésticos. Percebeu-o; contudo, não ficou tranqüila. Na manhã seguinte escreveu um bilhete, que foi logo caminho de Andaraí. A resposta, que lhe chegou às mãos no momento em que provava um vestido novo, teve a cortesia de esperar que ela terminasse a operação. Lida finalmente, dissipou todos os receios da véspera.
No dia seguinte fez-se o enterro, que foi um dos mais concorridos que ainda viram os moradores do Andaraí. Cerca de duzentas pessoas acompanharam o finado até à morada última, achando-se representadas entre elas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de família. Seu pai fora magistrado no tempo colonial, e figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado materno descendia de uma das mais distintas famílias paulistas. Ele próprio exercera dois empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do que lhe adveio a carta de conselho e a estima dos homens públicos. Sem embargo do ardor político do tempo, não estava ligado a nenhum dos dois partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que ali se acharam na ocasião de o dar à sepultura. Tinha, entretanto, tais ou quais idéias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e liberais, justamente no ponto em que os dois domínios podem confundir-se. Se nenhuma saudade partidária lhe deitou a última pá de terra, matrona houve, e não só uma, que viu ir a enterrar com ele a melhor página da sua mocidade.
A família do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr. Estácio, e uma irmã, D. Úrsula. Contava esta cinqüenta e poucos anos; era solteira; vivera sempre com o irmão, cuja casa dirigia desde o falecimento da cunhada. Estácio tinha vinte e sete anos, e era formado em matemáticas. O conselheiro tentara encarreirá-lo na política, depois na diplomacia; mas nenhum desses projetos teve começo de execução.
O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do enterro, foi ter com Estácio, a quem encontrou no gabinete particular do finado, em companhia de D. Úrsula. Também a dor tem suas volúpias; tia e sobrinho queriam nutri-la com a presença dos objetos pessoais do morto, no lugar de suas predileções quotidianas. Duas tristes luzes alumiavam aquela pequena sala. Alguns momentos correram de profundo silêncio entre os três. O primeiro que o rompeu, foi o médico.
— Seu pai deixou testamento?
— Não sei, respondeu Estácio.
Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou três vezes, gesto que lhe era habitual quando fazia alguma reflexão.
— É preciso procurá-lo, continuou ele. Quer que o ajude?
Estácio apertou-lhe afetuosamente a mão.
— A morte de meu pai, disse o moço, não alterou nada as nossas relações. Subsiste a confiança anterior, do mesmo modo que a amizade, já provada e antiga.
A secretária estava fechada; Estácio deu a chave ao médico; este abriu o móvel sem nenhuma comoção exterior. Interiormente estava abalado. O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade, expressão em que, aliás, nenhum dos outros reparou. Logo que começou a revolver os papéis, a mão do médico tornou-se mais febril. Quando achou o testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que sucedeu a serenidade habitual.
— É isso? perguntou Estácio.
Camargo não respondeu logo; olhou para o papel, como a querer adivinhar o conteúdo. O silêncio foi muito demorado para não fazer impressão no moço, que aliás nada disse, porque o atribuíra à comoção natural do amigo em tão dolorosas circunstâncias.
— Sabem o que estará aqui dentro? disse enfim Camargo. Talvez uma lacuna ou um grande excesso.
Nem Estácio, nem D. Úrsula, pediram ao médico a explicação de semelhantes palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico pode lê-la nos olhos de ambos. Não lhes disse nada; entregou o testamento a Estácio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido em suas próprias reflexões, ora arranjando maquinalmente um livro da estante, ora metendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista queda, alheio de todo ao lugar e às pessoas.
Estácio rompeu o silêncio:
— Mas que lacuna ou que excesso é esse? perguntou ao médico.
Camargo parou diante do moço.
— Não posso dizer nada, respondeu ele. Seria inconveniente, antes de saber as últimas disposições de seu pai.
D. Úrsula foi menos discreta que o sobrinho; após longa pausa, pediu ao médico a razão de suas palavras.
— Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excelentes. Era seu amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem a confiança que ambos depositávamos um no outro. Não quisera, pois, que o último ato de sua vida fosse um erro.
— Um erro! exclamou D. Úrsula.
— Talvez um erro! suspirou Camargo.
— Mas, doutor, insistiu D. Úrsula, por que motivo nos não tranqüiliza o espírito? Estou certa de que não se trata de um ato que desdoure meu irmão; alude naturalmente a algum erro no modo de entender... alguma coisa, que eu ignoro o que seja. Por que não fala claramente?
O médico viu que D. Úrsula tinha razão; e que, a não dizer mais nada, melhor fora ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impressão de estranheza que deixara no ânimo dos dois; mas da hesitação com que falava, concluiu Estácio que ele não podia ir além do que havia dito.
— Não precisamos de explicação nenhuma, interveio o filho do conselheiro; amanhã saberemos tudo.
Nessa ocasião entrou o padre Melchior. O médico saiu às 10 horas, ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estácio, recolhendo-se ao quarto, murmurava consigo:
— Que erro será esse? E que necessidade tinha ele de vir lançar-me este enigma no coração?
A resposta, se pudesse ouvi-la, era dada nessa mesma ocasião pelo próprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava à porta:
— Fiz bem em preparar-lhes o espírito, pensou ele; o golpe, se o houver, há de ser mais fácil de sofrer.
O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguém pôde ver-lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Exumou o passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu, nada foi comunicado a ouvidos estranhos.
As relações do Dr. Camargo com a família do conselheiro eram estreitas e antigas, como dissera Estácio. O médico e o conselheiro tinham a mesma idade: cinqüenta e quatro anos. Conheceram-se logo depois de tomado o grau, e nunca mais afrouxara o laço que os prendera desde esse tempo.
Camargo era pouco simpático à primeira vista. Tinha as feições duras e frias, os olhos perscrutadores e sagazes, de uma sagacidade incômoda para quem encarava com eles, o que o não fazia atraente. Falava pouco e seco. Seus sentimentos não vinham à flor do rosto. Tinha todos os visíveis sinais de um grande egoísta; contudo, posto que a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lágrima ou uma palavra de tristeza, é certo que a sentiu deveras. Além disso, amava sobre todas as coisas e pessoas uma criatura linda, — a linda Eugênia, como lhe chamava, — sua filha única e a flor de seus olhos; mas amava-a de um amor calado e recôndito. Era difícil saber se Camargo professava algumas opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se as tinha, nunca deu manifestação prática; e no meio das lutas de que fora cheio o decênio anterior, conservara-se indiferente e neutral. Quanto aos sentimentos religiosos, a aferi-los pelas ações, ninguém os possuía mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom católico. Mas só pontual; interiormente, era incrédulo.
Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher, — D. Tomásia, — meio adormecida numa cadeira de balanço e Eugênia ao piano, executando um trecho de Bellini. Eugênia tocava com habilidade; e Camargo gostava de a ouvir. Naquela ocasião, porém, disse ele, parecia pouco conveniente que a moça se entregasse a um gênero de recreio qualquer. Eugênia obedeceu, algum tanto de má vontade. O pai, que se achava ao pé do piano, pegou-lhe nas mãos, logo que ela se levantou, e fitou-lhe uns olhos amorosos e profundos, como ela nunca lhe vira.
— Não fiquei triste pelo que me disse, papai, observou a moça. Tocava por distrair-me. D. Úrsula como está? Ficou tão aflita! Mamãe queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a tristeza daquela casa.
— Mas a tristeza é necessária à vida, acudiu D. Tomásia, que abrira os olhos logo à entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as próprias, e são um corretivo da alegria, cujo excesso pode engendrar o orgulho.
Camargo temperou esta filosofia, que lhe pareceu demasiado austera, com algumas idéias mais acomodadas e risonhas.
— Deixemos a cada idade a sua atmosfera própria, concluiu ele, e não antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não passaram do puro sentimento.
Eugênia não compreendeu o que os dois haviam dito. Voltou os olhos para o piano, com uma expressão de saudade. Com a mão esquerda, assim mesmo de pé, extraiu vagamente três ou quatro notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fitá-la com desusada ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação interior. A moça sentiu-se enlaçada nos braços dele; deixou-se ir. Mas a expansão era tão nova, que ela ficou assustada e perguntou com voz trêmula:
— Aconteceu lá alguma coisa?
— Absolutamente nada, respondeu Camargo, dando-lhe um beijo na testa.
Era o primeiro beijo, ao menos o primeiro de que a moça tinha memória. A carícia encheu-a de orgulho filial; mas a própria novidade dela impressionou-a mais. Eugênia não creu no que lhe dissera o pai. Viu-o ir sentar-se ao pé de D. Tomásia e conversarem em voz baixa. Aproximando-se, não interrompeu a conversa, que eles continuaram no mesmo tom, e versava sobre assuntos puramente domésticos. Percebeu-o; contudo, não ficou tranqüila. Na manhã seguinte escreveu um bilhete, que foi logo caminho de Andaraí. A resposta, que lhe chegou às mãos no momento em que provava um vestido novo, teve a cortesia de esperar que ela terminasse a operação. Lida finalmente, dissipou todos os receios da véspera.
Um comentário:
Texto retirado do livro Helena, de Machado de Assis
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