Faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver ...
faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos...
faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver...
era bom aquele sistema que Ulisses inventara: o que não soubesse ou não pudesse dizer, escreveria e lhe daria o papel mudamente — mas dessa vez não havia sequer o que contar...
E agora chegara o momento de decidir se continuaria ou não vendo Ulisses. Em súbita revolta ela não quis aprender o que ele pacientemente parecia querer ensinar e ela mesma aprender — revoltava-se sobretudo porque aquela não era para ela época de "meditação" que de súbito parecia ridícula...
E agora chegara o momento de decidir se continuaria ou não vendo Ulisses. Em súbita revolta ela não quis aprender o que ele pacientemente parecia querer ensinar e ela mesma aprender — revoltava-se sobretudo porque aquela não era para ela época de "meditação" que de súbito parecia ridícula...
havia também algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar...
Mais uma vez, nas suas hesitações confusas, o que a tranqüilizou foi o que tantas vezes lhe servia de sereno apoio: é que tudo o que existia, existia com uma precisão absoluta e no fundo o que ela terminasse por fazer ou não fazer não escaparia dessa precisão; aquilo que fosse do tamanho da cabeça de um alfinete, não transbordava nenhuma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete: tudo o que existia era de uma grande perfeição. Só que a maioria do que existia com tal perfeição era, tecnicamente, invisível: a verdade, clara e exata em si própria, já vinha vaga e quase insensível à mulher.
Bem, suspirou ela, se não vinha clara, pelo menos sabia que havia um sentido secreto das coisas da vida. De tal modo sabia que às vezes, embora confusa, terminava pressentindo a perfeição — de novo esses pensamentos, que de algum modo usava como lembrete (de que, por causa da perfeição que existia, ela terminaria acertando) — mais uma vez o lembrete agiu nela e com seus olhos ainda escuros agora pelo pensamento perturbado, decidiu que veria Ulisses pelo menos mais esta vez.
E não era porque ele esperava por ela, pois muitas vezes Lóri, contando com a já insultuosa paciência de Ulisses, faltava sem avisar-lhe nada: mas à idéia de que a paciência de Ulisses se esgotaria, a mão subiu-lhe à garganta tentando estancar uma angústia parecida com a que sentia quando se perguntava "quem sou eu? quem é Ulisses? quem são as pessoas?" Era como se Ulisses tivesse uma resposta para tudo isso e resolvesse não dá-la — e agora a angústia vinha porque de novo descobria que precisava de Ulisses, o que a desesperava — queria poder continuar a vê-lo, mas sem precisar tão violentamente dele.
Ps: Trechos do livro "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres" de Clarice Listector; diz muito sobre o momento...
Um comentário:
é... esse livro simplesmente me tomou horas de leitura... Não o escolhi! Ele me tomou violentamente! Mas eu gostei, foi bom, de um tempo só ele me justificou o título e me convenceu de que talvez certas coisas não precisam mesmo de ordem, né!!!!
Grande abraço, Lee!
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