domingo, 27 de novembro de 2011

Ismália do século XXI (2ª Edição)


Então é assim que termina uma vida? Com um corpo frio, sem vida, sem emoção? Onde tudo o que se viveu se acaba num instante. Foi assim que Deus preferiu deixar os corpos de seus filhos na terra? Foi como se eu estivesse segurando uma pedra quando juntei o corpo dele ao meu naquela manhã, num instante derradeiro de loucura. 
Quando acordei, fiquei te olhando Miguel, não quis te acordar, estava decidida, que mudaria, ia dizer que mudaria que tentaria mudar por você. Mas, quando fui beijar seus olhos, não havia calor neles, nem sentido, você não estava mais lá, e sim o que Deus deixou de você pra mim... 
Na noite anterior, não parecia uma noite qualquer, você me abraçou e disse, eu vou estar sempre com você, eu prometo. Mas, a vida não é como planejamos, não é? Deus cria as pessoas, as projeta, manda pra Terra, e quando menos se espera nos tira a pessoa amada, sem explicação nenhuma, nem pedido de desculpas, e é claro que Ele tiraria você de mim, você é um anjo, meu anjo! Que tentava me manter na Terra, enquanto minha loucura me consumia. Você dizia, saia daí, não é aí que está a explicação, não há explicação para o que você procura... O que eu procuro? Não sei, você nunca me disse, agora sai daí, que não está no céu, na lua, ou nas estrelas... Então onde está? Foi no céu que eu a vi... Bem na minha frente, numa noite comum, solitária. Por que ela não aparece de novo... Por quê?  Por que ela não aparece e me diz o porquê dela ter se mostrado, e desaparecido tão de repente. Por que ela não me atende? Por quê?! Se todas as noites eu acordo no meio da noite e peço para que ela apareça e me revele o sentido da minha vida, e por que ela me escolheu para essa loucura. Peço para que ela me liberte dessa loucura de ver o que as outras pessoas não vêem, dessa mesquinhez, crueldade e exploração com que o homem se submete e submete aos outros. Por que eu, se eu nada posso fazer, pois estou dominada pela loucura, a qual foi a única que me amparou para essa missão. Não, eu não posso dizer que ela me deixou sozinha, ela me deu o Miguel. 
Ainda me lembro a primeira vez que eu o vi. Ele não queria a fama dos teatros e sim, o bem e leveza que ele trás. Foi num teste para uma peça minha. Ele logo me encantou, e se aproximou de mim como algo inexplicável, logo se interessou pelo que eu sou e penso, pela minha loucura e estranheza. Logo, já morava comigo. Com muitas rejeições por parte da família dele; eu era mais velha e louca. Mas, ele foi contra todos.  Ele me fazia bem e eu a ele. Ele me equilibrava e concertava. Era o equilíbrio entre a loucura da realidade, a consciência e o ser feliz. Quando eu contei a ele sobre a minha busca, ele me entendeu, não me achou louca como meus pais acharam, não quis se distanciar. Ele apenas disse, um dia você vai encontrar querida, um dia você vai. Ele me dizia, você tem que esquecer um pouco do que é o mundo lá fora e sair um pouco, como antes, se lembra? Íamos ao teatro, saíamos, bebíamos. Às vezes sinto falta daquela época, mais, amo você da mesma forma e te respeito pela sua forma de ver o mundo. Você acaba assustando as pessoas, querida. Mais, as crianças gostam de mim, por que elas ainda não foram formadas e ainda possuem sensibilidade. Elas me vêem como eu sou, não como uma louca, mais é uma pena que um dia elas se tornem adultas. Elas são tão simples e adoráveis... E brincar com elas é a única coisa que vale a pena ser feita. Principalmente aquelas abandonadas e rejeitadas. É uma pena, por que essas sim são uma salvação, elas terão bom coração por muito tempo, mas ninguém vê. 
Agora, que adianta sair, se eu vou me lembrar dele, se o que restou dele agora está apenas em mim. Suas manias, cigarros, telas, desenhos, suas palavras, seu calor, seu cheiro. Do quer adianta? A família dele veio aqui e levou tudo que lhe pertencia, mais não levou o mais precioso; as lembranças, os momentos, os abraços, os beijos e o amor, o nosso amor. Ah! Como me faz falta, se abraço acolhedor, seu calor, seu carinho. Como eu queria tê-lo só mais uma vez perto, de mim, para tirar de mim essa angústia que me toma! Só ele a tiraria de mim agora. Eu deitaria em seu colo e choraria, deixaria tudo lá, na sua pele, para que ele organizasse e arquivasse para mim, mais ele se foi. 
Quem sabe se Ela pode tirar essa angústia de mim,eu não suporto mais esse sentimento que me acompanha, essa solidão, essa realidade nua e crua que Deus me mostra todos os dias quando eu olho pela janela. Quem sabe se eu me ajoelhar e rezar, ela não vem? “Ave-Maria, cheia de graça...” (apareça!) (Arranque isso de mim! Eu não quero mais!) E eu peço! Mais Ela não vem. Talvez ela queira que eu vá ao seu encontro, ao encontro do Miguel. Sim, é claro! Ela me tirou dele para que eu fosse ao seu encontro... Ah! Agora posso vê-la novamente. Vestida de branco, com manto azul, linda, lívida, calma e acolhedora. 
Do alto da janela do apartamento, eu posso vê-la, talvez se eu subir mais, eu a alcance. Isso me lembra um poema que mamãe lia para mim.
“Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.”
...[Sim, e sou Ismália.]
“No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...”
A lua... Maria... 
Eu a vejo no céu, e na imensidão dessa cidade solitária.
Agora, posso ser Ismália. Vejo-a agora, e sim, que posso alcançá-la.
Se eu subir, fico mais perto... Mais perto...
Topo...
Posso pegar sua mão... Sim, estou indo...
Mais um passo...
Minha alma subiu ao céu, meu corpo desceu às pedras, de um estacionamento...
Agora, tenho Maria,
Agora tenho Miguel...


(Leandra Marcondes)

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